07/09/2010

Flusser escreve sobre o amigo Vicente Ferreira da Silva

Por Danielle Denny


Quinta-feira, 26 de agosto de 2010




Vicente Ferreira da Silva   




Vilém Flusser   
Em texto de 1972, na edição de maio e junho da revista Convivium, dedicada a Vicente Ferreira da Silva, Vilém Flusser supera sua discordância com a orientação ideológica reacionária da revista e contribui com um texto raro que discute a responsabilidade do intelectual.

Vicente foi um contemporâneo e amigo, que assim como Flusser, era heideggeriano e teve problemas com a academia, portanto ambos fazem critica acadêmica, social e cultural. Morreu tragicamente indo para santos em 1966 e era marido da poetiza Dora Ferreira da Silva, que traduziu obras de Carl Jung.

Estudos de filosofia ignoraram e continuam ignorando tanto Vicente como Flusser. Afinal, a recomendação flusseriana era só fazer inimigos, a amizade deveria ser constantemente submetida a provas, para verificar se resiste, pois um bom pensamento tem de resistir a ataques.

Essa problemática está presente logo no título do texto: “Da responsabilidade do intelectual” de estar aberto a questões. É intensão de Flusser proteger Vicente de sua própria ingenuidade filosófica, por isso o ataca dialeticamente ao longo do artigo.

São temas reincidentes nas obras de Flusser, e no artigo sob análise, além do cristianismo, marxismo e judaísmo, a relação discurso e diálogo, havendo responsabilidade apenas no diálogo. Daí surge a questão tematizada no artigo, de todo filosofar verdadeiro ser irresponsável ou socialmente articulado. “O mero explicar implica a modificação do mundo. Em suma: revelam a responsabililidade implícita em toda filosofia” (Flusser, 1972:298) Verantvortung (responsabilidade) contém a palavra antvortung (resposta em alemão).

Incomodava Flusser no brasileiro a autoconsideração como moderno e depois como pós-moderno. Já que aqui não houve história como poderia haver moderno? Nesse sentido, uma das críiticas a Vicente é que ele, como a maioria dos brasileiro, se colocava nas posições ideológicas sem conhecer os fundamentos, as bases culturais e existenciais do pensamento.

Alguns intérpretes atuais acreditam que Flusser tinha, portanto, dificuldade de dialogar com a sociedade brasileira. Se sentia frustrado pela falta de interlocutores. Sentia a premência de voltar para a Europa. Outros, afirmam que ele encontrava diálogo sim, como, por exemplo, com Milton Vargas, engenheiro, professor da Escola Politécnica da USP, que dialogava sempre com Flusser.

Flusser identifica elos entre os pensamentos de Vicente e os argumentos de Martins Buber, cuja obra “Eu E Tu” descreve as relações humanas como um emaranhado em que o eu está para o tu assim como o tu para o eu, ambos se reconhecem mutuamente uns nos outros. Por meio do tu o eu se encontra. Mas não só Vicente como Flusser precisariam dos diversos “tus” brasileiros para se identificar. Seria no feixe de relações com os brasileiros que Flusser encontrava sua essência e inquietude.

É preciso diferenciar o filósofo do pensador. Flusser não se apresentava como filósofo mas era um pensador. O maior pensador brasileiro para Flusser, era Oswald de Andrade, que também não fora admitido à academia sob o título de fílosofo. O conceito de Flusser de diálogo demolidor era insuportável para a cultura barroca brasileira. Sua atuação acadêmica no Brasil ficou inviável, porque o diálogo com ele passou a ser temido.

Nos outros países ele se anunciava, no entanto, como brasileiro, afinal tinha se naturalizado brasileiro, seus filhos eram brasileiros, mas ao mesmo tempo falava que não precisava de nacionalidades, homem precisa de um teto sobre a cabeça não de uma nação. Se recusava a falar diante de qualquer bandeira.

Flusser queria sempre causar surpresa. Só poderia fazer isso tendo vindo para o Brasil. Aqui estava em diáspora. Ele quebrava as regras porque conhecia muito bem as regras. Filósofos alemães pensam na direção da confirmação. Ele pensava sua vida e a teorisava, problematizando. Por isso ficou conhecido na Europa, ele se tornou diferente e os paradigmas dele se tornaram surpreendentes para os europeus.

O método identificado por Flusser no pensamento de Vicente é o mesmo que adota para si: explosão do problema (não a simples iluminação) e distanciamento. E essa explosão se dá a partir do diálogo. E pelo método de distanciamento tenta se posicionar de vários ângulos diferentes isolando o objeto, como se pudesse apresentar todas as moléculas do problema tanto as aparentes como as veladas, sempre identificando paradoxos.

Problemas sistêmicos enfrentados por Flusser em 1972: em plena ditadura, em época de polarizações e idealismos, tinha de definir esquerda e direita, tinha de montar um sistema ou fazer tentativa dialética de um novo sistema, pensando esquerda e direita. Por essa razão os marxistas achavam que Flusser era de direita e a direita achava que Flusser era marxista. Chamava a esquerda brasileira de esquerda festiva.

Dialética e dialógico. Dialética sistema que exclui. Dialógica trabalha mais por aproximações, também é forma dolorida porque não busca aplausos. Platão na dialética cria interlocutores. No dialogismo interlocutores são de fato. No “Enigma do Homem”, Edgar Morin mostra que dialética vai até um ponto, para continuar a observar o problema tem de ir mais além.

Em cartas, Flusser explica que sai em 1973 do Brasil por causa do direito de ir e vir. Essa declaração pode ser entendida de várias formas, tanto com relação a repressão da ditadura como ao próprio fluxo das idéias, não havia mais esfera pública para as pessoas se declararem pensantes. Houve uma destruição do público, a TV divulgava o lema “Brasil, ame-o ou deixe-o”, toda a mídia era propaganda institucional. Tanto os da esquerda como os de direita não tinham mais espaço para o diálogo.

Diálogo era a forma para Flusser gerar conhecimento. E a comunicação sempre tem uma noção moral. Conversação não tem essa leitura moral de como falamos sobre alguma coisa. Assim, seria mais interessante para Flusser. É pelo método do diálogo que se constroi conhecimento.

Referências:
FLUSSER, Vilém. Da responsabilidade do intelectual. Convivium, XI, v.16, (3): 297-303, maio-jun. 1972.
Além desse texto raro da Convivium, foi encontrado outro texto, de Flusser, também sobre Vicente: http://desenredos.com.br/6dss_flusser_201.html

Danielle Denny participa do grupo de estudos sobre Vilém Flusser, do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, http://www.cisc.org.br/html/index.php, o presente texto é uma memória das discussões travadas durante o primeiro dos 8 encontros que serão realizados em 4 universidades durante o segundo semestre de 2010.

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